Resenha: A Morte de Haroldo Maranhão, de Haroldo Maranhão


Para quem gosta de categorizar, é tarefa difícil dizer do que se tratam as intituladas “novelas” d’A Morte de Haroldo Maranhão. Para quem gosta de desafios, porém, é justamente nessa indefinição que está o seu sabor. Sem dúvida fazendo valer a liberdade formal e a ludicidade da modernidade, o livro de Haroldo Maranhão, lançado em 1989, torna complicadíssimo afirmar não só porque se tratam formalmente de novelas (onde está a unidade do núcleo?) mas principalmente – e para o grande público a quem pouco importa, com razão, a definição formal – o que significam individualmente e, maior questionamento, o que as ligam umas às outras. Todas tratam, claramente, da questão do duplo (um outro exatamente igual a mim), tema bastante utilizado pela literatura fantástica do século XIX, e, à primeira vista, é este clima de indefinição fantástica que vai também ordenar as “novelas”.
Nas duas primeiras partes o duplo é um fato, ou ao menos um quase fato, a quem só o narrador conhece e acredita como tal, sempre fazendo o leitor crer, pelo seu relato e pelos seus argumentos, na existência de tão improvável, e mesmo macabro, ser. Em “A cantora finlandesa”, o duplo aparece após a morte do “original”, conhecida do narrador, e não o assusta de fato porque a teoria do duplo é para ele crível, e ele a apresenta ao leitor. Já em “Amanhã embarco para a Basiléia”, o original defronta-se com seu próprio duplo num outro país, e segundo a teoria, após esse encontro o original deve morrer... o que perturbar o narrador é não saber se ele é o duplo ou o original; e o que começa também a perturbar o leitor é perceber que esse narrador não é o mesmo da novela anterior. Haroldo Maranhão usa, em ambas, deliberadamente, da estrutura clássica do fantástico: o narrador-personagem conta sua experiência a um leitor que deve nele acreditar, mas deixa brechas que nunca nos permite definir se o fato é da ordem sobrenatural, que nos faz crer o narrador, ou se não passa de uma sua alucinação qualquer. Em outra novela, Miguel Miguel, Maranhão utilizou essa mesma estrutura, obedecendo até o fim o princípio da não-conclusão fantástica, dessa indefinição que deixa o leitor perturbado até depois de terminar de ler a história e que tanto fascinou os leitores do século XIX, que talvez mais do que nós buscavam a tudo definir, no afã do positivismo vigente. Mas não é o que acontece nas “novelas” d’A Morte: a terceira parte, propriamente “A morte de Haroldo Maranhão” não se faz em torno do duplo, mas apenas de uma coincidência de nome de um escritor que o adotou pela força aparente e que de repente tem a notícia de que o seu “original”, a quem imitou o nome, foi assassinado por um misterioso europeu... a narrativa toma rumo totalmente diferente das anteriores, com ares de conto policial, afinal, interessa ao novo narrador descobrir o assassino, pois ele sente-se culpado, sente que o Haroldo Maranhão morto devia ter sido a “cópia”, ele. Não parasse por aí, o novo narrador-personagem se revela autor do “conto” intitulado “A cantora finlandesa”, obra de ficção com uma inspiração real. Estaria nessa superficialidade a ligação das “novelas” de Maranhão (o real, não esse a quem ele criou para matar ou para roubar o nome do outro)? A questão parece muito mais ampla, afinal, a indefinição fantástica, se se limita às duas partes iniciais, tem ecos de realidade, de interferência da literatura na realidade, mesmo que essa realidade seja a criada ficcionalmente. E se for mesmo tão superficial, fechando-se com a “descoberta” do assassino, o que as une à “Amanhã embarco para a Basiléia”? Como visto, se o caso é criar indefinições, dubiedades de maneira original, quebrando as fórmulas prontas dos gêneros, tanto do fantástico com que inicia, tanto do policial com que parece flertar ao final, Maranhão mostrou-se, mais uma vez, mestre.

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