Clichê, mas sempre moderno


Ah! Os clichês da vida urbana contemporânea! E há quanto tempo é contemporânea, e há quanto tempo são clichês! O anonimato das grandes cidades é um dos melhores, afinal, quem nunca se sentiu genuinamente o anônimo andando por qualquer capital? Nem precisa ser São Paulo ou Rio de Janeiro, basta ser uma cidade com pouco mais de 50 mil habitantes, o que estou supondo, claro, acho que 50 mil já é número grande o bastante para a gente se sentir um grão de areia – pensando bem, para mim 1000 já é número grande suficiente para me fazer perder as contas, mas isso não vem ao caso. Isso ainda causa melancolia no século XXI? Creio que para a maioria desses anônimos, que não conhecem outra vida, passa mesmo é despercebido ser ou não ser anônimo (irônico? Acho que sim). A mim mesma agrada bastante sair caminhando olhando os anônimos, que muitas vezes parecem mesmo anômalos, eu o maior deles, pensando no quanto o mundo e os ônibus são vastos de pernas brancas, pretas e amarelas! Infelizmente nem sempre vasto de anomalias sensíveis, diria até que na maioria das vezes são bizarrices cruéis, mas não quero falar disso agora. Enfim, ser anônimo, anômalo ou não, já nem é algo melancólico, às vezes é até busca nessa vida tão cheia de compromissos teimando em encontrar muita desilusão...
Dia desses, deprimida, fui brincar de ser anônima, andar por lojas sem nada comprar, ter uma conversa trivial com outro anônimo, não necessariamente deprimido, e no fim das contas fui ao cinema. Vi um filme tão anti-anônimo, de uma vida interiorana francesa, que sai feliz e distraída, esquecendo que as grandes cidades são grandes não só de anônimos, mas de ruas e, claro, me perdi. Esse perder-se feliz como qualquer um que não conhece a cidade é não só típico dos anônimos novos que não gostam de pedir informação, mas também dos que sentem prazer nas andanças sem rumo. No fim das contas me achei, andei muito ainda e fiquei ainda mais feliz em ser anônima. Andar sem ter que dar satisfação, sem preocupação de ser reconhecida, eis a vantagem de uma nova cidade. Se nela você consegue manter uma vida bem reservada, sem família e com pouquíssimos amigos, de preferência mais ocupados que você, tudo vai decorrer nesse grande anonimato por mais tempo, o que dá sempre uma sensação de frescor.
Mas o problema é esse “às vezes”. Quem busca anonimato o tempo todo? Não, não tenho nem tantos credores nem tantos pecados para viver fugindo do reconhecimento. Do que eu sinto falta mesmo nessa vida tão constantemente anônima é dos famosos encontros casuais... Do antigo colega do colégio sentado no ônibus lotado que vai segurar meu material, me perguntar como anda a vida e, por mais que não tenhamos nunca sido muito próximos, vai me remeter a um passado ao menos agridoce. E do ex-namorado de quem guardo um imenso carinho, mas que para segurança geral da nação, e claro, da canoisse* dele, me mantenho distante, que posso ver passando no ônibus ao lado do meu e morrer de rir da esdrúxula situação não absolutamente nova. Mas, principalmente, daquele velho amigo mais velho, que me fez tão bem e mesmo assim acabamos nos distanciando, e que, um belo dia, caminhando do outro lado da cidade, depois do trabalho, no bairro de mais de 50 mil habitantes em que ele sempre morou, vou ver passar de bicicleta ao meu lado, falarei baixo o seu nome, mas sorrirei com tanta certeza que ele vai olhar, sorrir um “boa tarde” espontâneo e curioso e passar. Anônima? Talvez, mas aquela curiosidade diz que não, que ele lembrará do rosto sorridente, só não saberá bem de onde...

*Canoisse: referente à “canoa”, modo paraense de dizer que o digníssimo ex é um pau mandado pela sua atual.

Comentários

  1. Ah Lali... juro que enquanto crítica literária em formação rs vou tentar tecer algum comentário imparcial sobre tua crônica hehe. Impossível. Adoro tua escrita leve e falsamente despretensiosa. Lembra criança que de um jeito leve e espontâneo sempre diz muito mais sobre a gente do que a gente mesmo. Adoro andar sozinha, também, adoro ser anônima e as vezes me incomoda até encontrar pessoas conhecidas, fico desconcertada. Mas é interessante também pensar que esse gosto pelo anonimato é de poucos, numa sociedade que valoriza tanto a super exposição. Fico pensando que depois de aparecer e ter o destaque "merecido" qual será o tamanho da solidão... Ah... mas o melhor/pior do anonimato, pra mim, sem dúvida, é andar por aí jurando que tá despercebido e pouco depois alguém comenta: "Te vi um dia desses em tal lugar...", não sei de ti, mas eu me sinto nua hehe Enfim, Lali, crônica pra ser crônica tem que ser um fiapinho de pequena, mas que a gente vai puxando e percebendo que lá ainda dá muito pano pra manga =) Parabéns pela linguagem e pelas observações, eu não teria feito tão bem e vou me valer delas quando sair de casa, anonimamente, em direção à rua, beijão

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  2. creio que de certa forma essa cronica aborda um pouco da crise de relações que vivemos...é com se o outro, nosso semelhante, q vive ali ao lado, se tornasse um ''estrangeiro'', um verdadeiro anônimo que não ''é em nada parecido conosco''. Isso é reflexo do individualismo, latente, do seculo XXI.

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