Descaindo a linha

     
"Meninos soltando pipa", de Carybé
    Há muitos séculos, um chinês descobriu a pipa. Claro que a chamou por outro nome, em mandarim ou um desses, quem sabe iang chin, mas o fato é que aquilo que ele inventou chegou até nós, brasileiros, com o lúdico nome de pipa. Ou papagaio, rabiola, enguinadeira... depende da região e do tipo específico de voo. Sim, meus caros, como o chinês previa, soltar pipa não se trata de diversão, é um tipo de ciência que nos permite arriscar-nos facilmente nesse empreendimento tão difícil que é voar.
    É claro que hoje já existem até mesmo os aviões supersônicos, mas nós, reles bípedes, ainda não conquistamos de fato os céus, quem os conquistou foram as máquinas. Nós apenas achamos que somos coisa muito importante controlando-as e acabamos, muitas vezes, perdendo o controle. Estão aí os acidentes que não nos deixam mentir. No entanto, a pipa, que nós apenas guiamos por um fio, essa sim conquista os céus, deixando-se plainar ao sabor do vento. E muitas vezes, mesmo depois de crescidos, nos perdemos a olhar as múltiplas cores que pintam o azul nessa época do ano, quem sabe desejando nós estarmos na outra ponta da linha.
    Quando era criança, metida às brincadeiras de menino, soltar pipa era uma das minhas atividades mais esperadas no ano. Meu irmão só não gostava porque nunca fui muito boa de cálculo, descaia tanto a linha, talvez tão empolgada com a altura que ganhava, que nem via o fio acabar, perdendo, obviamente, a pipa do meu irmão (pois é, eu mesma nunca tinha uma). Uma das recordações mais interessantes dessa época é a de ouvir os “óvái” que serviam como tiro de largada para a galera correr atrás de uma pipa derrotada no entrelaçamento de fios. Eu corria, mas sem nenhuma esperança de chegar antes da marmanjada. Uma vez, um amigo meu correu com toda a velocidade que ele nem sabia que tinha, entrou pelo quintal do vizinho e saiu de lá quase que quebrando todos os recordes (ao menos o próprio): a pipa tinha caído em cima da casinha do cachorro, um simpático rottweiler, que, creio, não apreciava muito nossa brincadeira de verão. Não se preocupem, o Abrão saiu ileso, mas depois disso nunca mais se animou tanto com um “óvái”.

    Hoje, andando nem tão de bobeira por essa cidade que ainda me é um tanto estranha, vejo os meninos soltando pipas, exatamente como fizemos, a minha geração e tantas outras anteriores. Não sei se gritam “óvái”, se “descaem” a linha, apenas passo e vejo como que um quadro, em que moleques descalços e só de bermuda, olham para o céu e movimentam os braços com tanta agilidade. Talvez com o mesmo encantamento que vem nem se sabe de onde, mas o mesmo que levou Ícaro aos céus e à morte, o chinês à sua invenção que virou brinquedo, Santos Dumont à máquina voadora. Nenhuma, ainda, perfeita no seu objetivo maior, que é nos fazer alçar voo próprio.

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