Sobre os trilhos

 

Em um desses momentos em que a mente voa, me vi dentro de um trem, a olhar as árvores que “passam” pela janela. O barulho da força das rodas sobre os trilhos trouxe uma lembrança do poema de Bandeira, “café-com-pão café-com-pão café-com-pão”...

Confesso que parece uma regressão ao início do século XX, imaginada como naquelas novelas de época no interior cafeeiro de São Paulo. Mas, não. Na minha paisagem estava o Cerrado da Serra das Araras, a longa cadeia que nos acompanha por Goiás, saindo do quadradinho do Distrito Federal em direção ao nordeste. Na minha imaginação, os trilhos corriam esses quase 300 km que hoje são de asfalto, e eu não precisava ficar atenta a motoristas que ultrapassam inconsequentes, caminhões com claros problemas de manutenção, animais que surgem inocente e de repentemente na pista, nem ao sono que me ataca... Não. Poderia apreciar a paisagem e dormir, dormir e apreciar a paisagem, e talvez até ler um pouco (não sei se minha enxaqueca se incomoda com o balanço de trilhos como se incomoda com o de rodas). E não gastaria uma parte considerável do suado salário com esse combustível que não para de aumentar. Uma “parte considerável” é eufemismo, inclusive. Só quem já teve que se deslocar com muita frequência para os interiores distantes sabe do drama.

O problema é que nesse país enorme, gigante, continental, como dizem, tudo é distante. Menos Rio e São Paulo, que, mesmo sendo distantes para muita gente, têm várias opções de chegada. E aí que tá. Eu acho que quando JK, o presidente do progresso de “50 anos em 5”, resolveu integrar o Brasil por rodovias, condenando, com isso, as ferrovias, ele não tinha muita noção de que as cidades desse território descomunal não eram assim longe uma da outra como Rio e São Paulo, nem que não teriam a mesma atenção do poder público. E mesmo construindo Brasília no coração do país, ele parece não ter se importado muito com os motoristas que dirigiriam cerca de 20h e muitos litros de combustível para fazer suas necessárias viagens até lá. Talvez imaginasse, como tanta gente na metade do século, que os carros voadores não demorariam a chegar, e talvez fossem acessíveis a todos.

Mas cá estamos nós, no ano de 2022 (digam isso com a surpresa que nossas avós falam essa frase), com as passagens de nossos ônibus voadores (os Airbus de variados números), custando uma pequena fortuna que não cabe mais no salário da maioria dos trabalhadores, e aeroportos que dificilmente se espalham para além das grandes cidades. Nos resta o bom e velho carro, individual ou coletivo, em viagens inseguras e quase tão caras quanto as aéreas. Enquanto isso, sonho o sonho, ao mesmo tempo retrô e futurista, de ter trens ligando esse país. Não as marias-fumaça do século XIX-XX, que, afinal, tudo evoluiu, mas os trens-bala asiáticos, que nos levariam muito mais rápido e em maior segurança, a preços que não dependeriam da oscilação do mercado petroleiro e dos liberais que o usam como desculpa mesmo quando a gente produz o próprio petróleo. Seria, afinal, como se estivéssemos na China, igualmente continental, mas com muito mais gente.

Quem diria que seriam os trens o meu sonho de modernidade.


Na altura de Formosa, o amanhecer de um longo dia de viagem pela BR-020.


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