Há
mais de uma coisa que chama a atenção logo no título deste livro. A referência
à célebre obra de Machado de Assis é a primeira; o fato de ser “quase” póstumas
é a segunda; de serem memórias de um ex-torturador é a terceira e mais
intrigante, afinal, o que haveria de se procurar nas memórias de um agente da
violência dos porões da Ditadura que
se poderia lhe aproximar em título a Brás Cubas?
O
fato é que nem quem for procurar neste Memórias
quase póstumas um relato “sério” da página negra da história
político-social brasileira nem quem for apenas em busca de um paralelo direto
com o Memórias póstumas machadiano o
encontrará. Se o livro se abre com uma intertextualidade latente no título,
logo ao início não se a acha, mas percebe-se uma narrativa em que o
personagem-narrador escracha-se, vulgariza-se, porém, mesmo falando no passado,
não tem a ciência nem a leveza de um morto. O autor não tem a audácia de
Machado invertendo a narrativa - do final para o início, e ainda intercalando as
reflexões - , conta sua história assim como estamos acostumados, do início para
o seu fim que, lembramos, ainda não é fato, mas é previsto pelo tumor descoberto
no cérebro. Mas a conta em fluxo de consciência a Deus e ao Diabo, que o
visitam para o acerto de contas final, embora o ex-torturador tenha certeza de a
quem pertence sua alma... E é desse encontro ironizado que se denota o mérito
da obra: aqui estará a profanação da tradição cristã na troca de papéis (a que
eles estabelecem por brincadeira com o ex-torturador e a que o autor lhe
confere pelo discurso) entre o filho sacrificado e o anjo decaído, estará o seu
não arrependimento latente, a sua avaliação altamente subjetiva da ditadura, as
análises, analogias, metáforas grotescas e originais de toda a sua vida
não-direcionada, de seu fim na velhice mas há muito numa vida sem rumo.
Aqueles
primeiros leitores a que me referi, que procuram o “relato sério”, rejeitarão a
obra como um dia rejeitaram Alegria,alegria
de Caetano e Quarup de Antonio
Callado. Mas, como também aconteceu com estes, poderão voltar atrás e perceber
nessa voz do ex-torturador não redimido as chaves para a compreensão e a
crítica do pensamento da repressão violenta que não podemos deixar cair no
esquecimento: a trágica (e muitíssimo grotesca) história da infância de Pedro,
nosso ex-torturador, pode ser lida muito mais do que como uma “desculpa
psicanalítica” para o inexplicável, mas como o próprio absurdo da violência
pela violência, como o alerta para nossos próprios atos, como uma metáfora de
um país arcaico em seu comportamento... e, por que não, como a ignorância (a do
ridicularizada. Da mesma forma, a
subjetivação da análise das ditaduras –
e esse é um dos pontos históricos mais bem alinhados do texto: o
torturador da Ditadura militar aprende seu ofício na Era Vargas... – atravessa
o superficial maniqueísmo e toca muito menos pelo abjeto das torturas, pois ele
quase não penetra essa descrição, do que pela naturalização da conduta
violenta, que se torna a sua própria razão de existir.
Mas
a narrativa de João Bosco Maia também guarda surpresas. Se passamos a história
toda tentando odiá-lo ou tentando redimi-lo, em qualquer alternativa somos
frustrados, seja pelas suas memórias ou pelo seu discurso espirituoso, no
entanto, o que não podemos esperar é que no meio de tanto desprezo haja algum
sentimento de culpa, não pelos que torturou e pelo famoso jornalista que foi
sua única vítima fatal, mas por aquelas a quem fez mal indiretamente... (o
leitor que não gosta que lhe contem os finais, pode ficar feliz que não o
farei, mas pode ficar frustrado porque nada mais para ele será uma surpresa).
Talvez os mais exigentes considerem esta “surpresa” incipiente, forçada, nada
original... eu digo que se enquadra bem na proposta nada audaciosa ou realista,
mas bem humorada e irônica da narrativa, dosada no grotesco e justificada nas
amarras textuais. Ao gosto contemporâneo ou pós-moderno, como queiram. E não
deixa de estar nisso uma aproximação com aquelas primeiras memórias póstumas de
nossa literatura, no humor ácido e no encontro com o seu lado relegado em vida,
que no caso dessas novas memórias, da mesma maneira nada louváveis, leva a ver
nosso ex-torturador com ares de triste demente. Aliás, cabe bem um sujeito meio
“esquizofrênico” numa narrativa marcada de um pastiche da nossa já tão
pastichizada realidade.
Cara Lali, encontrei tua resenha na internet sobre o meu romance. Sinto-me lisonjeado, sobretudo pelo fato de teres destinado teu tempo, além do da leitura, a publicar tua impressão acerca do livro. Poucos o fazem. Vejo que a mereci ao lado de um Haroldo Maranhão.
ResponderExcluirManifestações dessa natureza são a moeda de qualquer artista.
Gostaria de tua autorização para postar em meu blog o teu comentário.
Te convido ainda para visitar esse espaço (http://joaoboscomaia.blogspot.com/) e, consequentemente, conhecer meus outros trabalhos.
Um grande abraço, com votos de uma grande amizade literária adiante!
Olá! Fiquei muito feliz em ver teu comentário e que estás seguindo este singelo espaço. Já estou seguindo o teu também. É claro que autorizo que publiques o texto, afinal, nada mais justo que um retorno a ti da tua própria obra. Um grande abraço!
ExcluirParabéns pela resenha. O autor é um entusiasta da literatura e valoriza muito àqueles (as)que conseguem ir além do óbvio e do que está "posto" ao consumo.
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