A Viajante, Rubem Braga


Iniciando as (minhas) comemorações do Centenário de Rubem Braga, um de nossos maiores escritores e sem dúvida o maior cronista, compartilho essa crônica que tem muito do que senti no recém terminado ano de 2012. O Velho Braga tem me acompanhado desde a adolescência  - e não é à toa que digo que ele é o verdadeiro homem da minha vida - e não há como negar sua influência na minha escrita ainda imatura, por isso também acho mais do que justo postar uma crônica sua nesse espaço em construção identitária. Saboreiem!

Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá.

Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique.

Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de uma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida - e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo para você sumir na curva do rio - você que não chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, par um instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e mais doçura  ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste, mas passou.

Apenas quero que dentro de si mesma haja, na hora de partir, uma determinação austera e suave de não esperar muito; de não pedir à viagem alegrias muito maiores que a de alguns momentos. Como este, sempre maravilhoso, em que no bojo da noite, na poltrona de um avião ou de um trem, ou no convés de um navio, a gente sente que não está deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena multidão de caras e problemas e inquietações que pareciam eternas e fatais e, de repente, somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação é grande recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa feita de muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade abandonada. E há também instantes bons, em terra estrangeira melhores que os das excitações e descobertas, e as súbitas visões de beleza sonhadas. São aqueles momentos mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, de repente, a cidade estranha, no palor do crepúsculo, respira suavemente como uma velha amiga, e reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e docemente, coisa sua.

Mas há também, e não vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo, é de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro antigo de chuva na terra da infância, de qualquer coisa esquecida e humilde - torresmo, moleque passeando de bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa mole, peteca, qualquer bobagem. Mas então as bobagens do estrangeiro não rimam com a gente, ruas são hostis e as casas se fecham com egoísmo, e a alegria dos outros que passam rindo e falando alto em sua língua dói no exilado como bofetadas injustas. Há o momento em que você defronta o telefone na mesa da cabeceira e não tem com quem falar, e olha a imensa lista de nomes desconhecidos com um tédio cruel.

Boa viagem, e passe bem. Minha ternura vagabunda e inútil, que se distribui por tanto lado, acompanha, pode estar certa, você.

Abril, 1952

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