Da liberdade de amar


    Quando a luz apagou, eles se disseram “boa noite”. Ela há pouco atravessara o quarto, num discreto baby doll, em direção à cama de casal onde dormiria sozinha. Já se aconchegava, pensando em como por tantos anos não pensara em casamento, mas tinha a união como eterna, essa que agora não era outra coisa senão lembrança e remorso, mas também certo alívio que então começava a aparecer com nome de liberdade... De repente, o corpo masculino deitou-se ao seu lado, puxando o lençol e dizendo “não sei o que estou fazendo, mas era isso o que eu queria fazer”. Ela riu tristemente, sabia que aquilo não passava de uma cena de incontrolável desejo, tão típico dos homens, mandou-o de volta ao seu quarto. Ele começou a acaricia-la, sem beijos, apenas as mãos circulavam pela barriga macia, os seios redondos, já um tanto pontiagudos, mas também tinha um ar triste, um ar de quem vai chorar a qualquer momento. Isso ela não via, o quarto permanecia escuro, ela apenas supunha pelas palavras ditas no início daquele ato amoroso, e pela quietude da respiração e da suavidade das mãos. O que eles não sabiam era que o que estava se passando ali, apesar de luxurioso, era, acima de tudo, muito afetivo, por isso era bom, apesar de errado. Uma amizade de tantos anos e de tão decisivos momentos, de tão intensas conversas divertidas, consoladoras, “papos cabeça”, não se deixaria levar por uma loucura tão puramente sexual, tinha, é claro, um amor recíproco, um amor que só é de homem e mulher pelos corpos tão desnudos em um momento tão inesperado, simples e íntimo. Não fosse isso, era como se sempre tivessem dormido juntos sem nunca repararem um no outro. Ela pensava, sentia ainda a solidão da separação e ia soltando os pensamentos como quem fala sozinha, ele ouvia, já sabia de toda aquela ladainha, mas ouvia e parecia que quanto mais ouvia mais remorso sentia, mas não da história dela, mas da dele próprio que estava construindo. A cabeça dele permanecia no colo dela enquanto ela soltava os pensamentos olhando o teto. Assim como nele só o que comunicava a luxúria eram as mãos, dela o corpo parecia quieto, relaxado, mas correspondia ao chamado do desejo, O que se passa para uma contradição tão grande de pensar e sentir? O corpo dela não correspondia como se fosse o outro, o ainda amado, ela sabia o tempo todo que não era ele, e os seus pensamentos naquele momento nem nele estavam, mas concentravam-se apenas em si mesma, nos questionamentos da sua solidão e do seu corpo. 

   “Tu não sentes remorso por estarmos assim?” “Sinto. Tu é que não devias ter feito isso.” “Sente, mas bem que deixa eu te acariciar, né? Hahaha” “HAHAHAHAHA”. 

   Num momento como esse, tão sexualmente terno, não há remorso por outros que seja maior. Não era o desejo que era maior, era o carinho e a solidão dela, era o carinho e a admiração dele. Era esse amor sem necessidade de compromisso, sem passado e sem futuro, que queria apenas uma brecha para se impor ali para nunca mais.

    Só depois de muito o desejo enfim tomou conta, com pressa, com raiva, com medo. Coito interrompido.  Sem peso, sem mágoa, sem o tal remorso... apenas não era assim que devia acabar.

Comentários

Postagens mais visitadas