No meio da cidade há um cemitério
Bem
no meio de Belém há um cemitério, que a gente chama Soledade. Quando ia “pro
centro”, criança, o ônibus passava ali ao lado, e eu tinha uma curiosidade
imensa de adentrar aqueles muros, visitar as tumbas tão diferentes. Na época,
ele estava fechado, ficou muito tempo assim, e tudo o que se via era o mato e a
parte mais alta dos mausoléus. Do lado de fora, barracas de feirantes me
mostravam que o tempo da mortandade era passado.
Quase
todo mundo ali sabe, mais ou menos, que o Cemitério da Soledade foi construído
para dar lugar aos mortos de uma epidemia que assolou a capital no século XIX:
da febre amarela. A curiosidade que eu tinha na infância, pelo estilo dos
mausoléus, cresceu na adolescência, quando descobri essa história macabra.
Fazia sentido que ninguém mais fosse enterrado ali. Quantos mortos? Além
daqueles, os escravizados e os indigentes eram levados a outro cemitério, bem
menos imponente, que não marcaria tanto a cidade, mas que deve ter recebido
muito mais gente...
Parei
para pensar nesse interesse que alimentei durante tanto tempo pelo cemitério depois
de ver a notícia de que apenas hoje a Itália contabilizou mais de 900 mortos
pela COVID-19. Quase mil, só hoje. Outro dia, quando foram mais de 600,
caminhões do exército levavam os corpos, que seriam enterrados sem velório,
dado o risco do contágio. Fiquei pensando nesse descarte de corpos e se seria
possível e desejável construir cemitérios para acolhê-los. Quando foram fazer o
trabalho de restauração do Soledade, para abri-lo à visitação do público, em
2013, mais de 150 anos depois que os corpos foram sepultados, havia todo um
trabalho de proteção, para evitar uma possível contaminação.
A
memória coletiva precisa desses lugares para ao menos pensar o que podem ser as
consequências de uma epidemia. No caso, uma pandemia. Precisamos ter às nossas
vistas as consequências. Como muitos dos corpos ceifados pela COVID-19, na
Itália, serão cremados, um dia terá que ser construído um memorial, inclusive
para lembrar a incompetência dolosa do governo, que tanto demorou para agir.
Não tem o mesmo peso sobre uma cidade que um cemitério bem no seu coração, mas,
afinal, também é preciso pensar nas consequências biológicas.
Mais
que tudo, porém, é preciso saber que o tempo da mortandade sempre está em
aberto, seja na Itália ou no Brasil. Não paguemos para ver. Porque não basta que
a ciência avance se viver ou morrer (Quantos? Quem?) continua dependendo muito
de nossas escolhas enquanto sociedade.
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